Cultura otaku polêmica e sensibilidade artística

Sensibilidade artística, cultura otaku e a polêmica de Miyazaki






Sketch de Hayao Miyazaki, um mestre na arte de contar histórias fantásticas com gente real e sentimentos reais.



(Estudo para A Viagem de Chihiro, 2001)



Hayao Miyazaki é, provavelmente, o mais importante diretor de animê de todos os tempos. Famoso no mundo inteiro, seus trabalhos possuem um senso de encantamento que já o fizeram ser comparado a Walt Disney.




Na verdade não há comparação, pois eles trilharam caminhos diferentes, sendo que Miyazaki é um artista genial, não um empresário e produtor visionário como foi Disney.




Mas a comparação entre eles faz sentido se pensarmos que os nomes de ambos soam como uma grife de qualidade em animação.

Roteirista, desenhista de mangá e story-boards, animador e diretor, Miyazaki até já ganhou um Oscar por seu animê A Viagem de Chihiro (2001).




Seu último longa, Vidas ao Vento (2013) foi indicado ao Oscar e vai estrear no Brasil em 28 de fevereiro próximo. Mas independente de vencer a estatueta ou não, Vidas ao Vento já entrou pra história por marcar a despedida de Miyazaki dos cinemas.




Aos 73 anos, ele não irá mais dirigir longas, mas continuará trabalhando com mangá e eventualmente poderá fazer animações de curta e média-metragem.







Animês estão sendo feitos por pessoas que não conseguem olhar para outras pessoas, segundo Hayao Miyazaki.



Homem de opiniões fortes e crítico da indústria dos animês, Miyazaki criou polêmica na semana passada ao declarar que um dos grandes problemas do mercado de animação no Japão é a legião de artistas otaku que trabalham na área.


Enquanto desenhava com a leveza que marcou sua carreira, Miyazaki alfinetou muitos colegas ao dizer que são pessoas que não são capazes de olhar para outros seres humanos.




Vamos colocar as coisas no contexto, antes que os mais afoitos digam que o mestre está velho e ranzinza. (Ranzinza ele sempre foi, e isso é fato bem conhecido nos bastidores da indústria.)


Ao longo dos anos e em ritmo cada vez maior, o chamado "fan service" tem dominado as produções japonesas. São cenas e situações inseridas ou adaptadas numa trama para potencializar a audiência dos fãs hardcore.








Eis aqui uma arte bem realizada e totalmente dentro do espírito do fan service.


Garotas angelicais com grandes seios em enredos recheados de closes reveladores e situações forçadas de erotismo formam um tipo de fan service. No fundo, é algo que existe apenas para atrair mais audiência.




Há inúmeros tipos de cenas e personagens que podem ser incluídos na definição, mas o apelo erótico raso é o mais comum.






Love Hina: Mostrando que uma série de harém cheia de fan service não precisa ser necessariamente ofensiva.



Os chamados mangás e animês de harém (muitas garotas próximas de um rapaz e disputando sua atenção) certamente vivem desse tipo de apelo.




Até mesmo o simpático mangá Love Hina, deKen Akamatsu, se encaixa nesses rótulos de fan service. E se tem humor e situações picantes a galera otaku vibra, claro. Mas, estamos falando da mesma coisa ao usar a palavra "otaku"?


Otaku é um termo que, no ocidente, virou sinônimo de fã de mangá e animê, mas que no Japão tem um sentido bem pejorativo.




Se refere a pessoas sem jeito, isoladas, sem amigos, relacionamento afetivo ou vida social e que se devotam religiosamente a um hobby.




Isso pode envolver coleções de miniaturas de trem, fotos de cantoras, bandas de rock, games ou qualquer tipo de entretenimento. É sobre esse tipo de otaku que Hayao Miyazaki fala, os otakus fãs de mangá e animê.


O otaku japonês genuíno é um produto da cultura japonesa, sendo extremamente difícil o mesmo modelo ser reproduzido fielmente em uma sociedade ocidental.




A maioria dos otakus japoneses tem mesmo fobia social, mas há os que vencem uma parte dela e entram no mundo profissional do desenho, ingressando nas indústrias de animê, games ou mangá.




Esses profissionais-fãs podem ser benéficos ou não, mas na visão de Miyazaki eles são um grande problema.


Existe aí uma questão de mercado, pois com o excesso de fan service tomando conta das produções, a indústria vai se fechando cada vez mais em nichos, segmentando cada vez mais a audiência.




Fan service muito apelativo acaba jogando o título para exibição tarde da noite ou madrugada, o que é inevitável.




Isso afasta o grande público e vai criando títulos cada vez mais herméticos, de fã para fã, o que não ajuda a expansão de horizontes, muito pelo contrário.




Mas, questões comerciais à parte, há muito mais o que se concluir das críticas de Miyazaki aos otakus-artistas.









Mitsuru Adachi: Desenhos que parecem gente que existe na vida real.



O mangá e o animê são, historicamente baseados em arte figurativa estilizada, derivada do cartum. Desde antes do revolucionário Osamu Tezuka, o mangá e o animê trazem uma simplificação da figura humana, sempre buscando a expressividade.




O exagero também faz parte disso. No entanto, as citadas mídias sempre tiveram muitos artistas que criavam com um pé na realidade, por mais fantasioso que fosse o enredo.




O sucesso vinha da identificação do grande público com pessoas de atitudes e gestos reais, humanos. E que agem como humanos no dia-a-dia.





Um dakimakurá, travesseiro de abraçar, um produto para adultos carentes, algo típico da cultura otaku.
Mesmo se inspirando em outros artistas como referência, a naturalidade gestual no desenho é fundamental para um bom ilustrador.




Veja o trabalho de autores como Masakazu Katsura, Ryoichi Ikegami, Rumiko Takahashi e Mitsuru Adachi. Seus personagens possuem posturas e gestos naturais, revelando conhecimento estrutural de desenho e arte.


Quando se estuda desenho, observar fotos, praticar com modelos vivos e estudar anatomia com livros (e não só com fotos eróticas) é fundamental, até quando o objetivo é fazer arte estilizada.




Porém, já existem gerações inteiras de artistas que aprenderam a traçar apenas copiando outros autores, focando em acabamento e poses repetidas, e não em estrutura da figura.


Some-se a isso o fato de que muitos otakus japoneses declaram que não gostam de mulheres de verdade, preferindo idolatrar garotas desenhadas, e terá heroínas que parecem existir apenas para povoar os sonhos de gente solitária.




Um exemplo extremo desse gosto de uma parte dos otaku são os dakimakurá, travesseiros longos com desenhos de garotas para o otaku dormir abraçado com sua "companheira virtual".




Talvez seja esse um dos pontos que incomoda Miyazaki, o excesso de sexualização e objetificação da mulher em muitos titulos de animê e mangá, perpetrados por gente que sonha com uma companhia feminina mas que nunca vivenciou a experiência de entender um relacionamento, vendo apenas o lado sexual.


Também pode-se questionar a falta de bagagem emocional, que é tipicamente otaku, para criar histórias com conteúdo humano e verdadeiro, ao invés de montes de clichês regurgitados e amontoados.




Ser incapaz de se relacionar socialmente acaba criando uma lacuna de experiência de vida, algo essencial para nortear a sensibilidade artística e a capacidade de contar histórias com real sentimento.




Claro que isso não é uma regra de conduta criativa, mas sem dúvida uma vida rica em experiências pode ser decisiva para formar a capacidade de comunicação de um artista através de seu trabalho.




Arte de Rob Liefeld, um exemplo americano da falta que faz estudar fundamentos de desenho e anatomia.




Citando um paralelo com a indústria dos quadrinhos de super-heróis americanos, existem diversos autores que jamais aprenderam os fundamentos básicos da anatomia, pois se desenvolveram apenas copiando seus desenhistas favoritos.


Sem conhecimento para embasar sua arte, aparecem desenhos com músculos inventados e hachuras colocadas não para representar sombras ou meios-tons, mas apenas para encher espaços com linhas dedesign.




E muitos outros até fazem desenhos realmente belos de corpos esculturais em ação, mas tornam-se medíocres ao desenhar crianças e idosos ou ao representar cenas simples como alguém tomando uma xícara de café. A situação, em termos de arte, é parecida com o que Miyazaki critica tanto em seu país.


Pode ser sinal dos tempos, Miyazaki pode estar generalizando e sendo alarmista demais, mas é fato que, ao deixar de observar o mundo e as pessoas ao seu redor, qualquer criador vai perdendo a sensibilidade e a capacidade de construir algo capaz de se comunicar com o grande público, fechando-se cada vez mais em seu mundo particular.




E isso vale tanto para roteiristas quanto para desenhistas. Nesse aspecto, e talvez esperando ser ouvido pelas novas gerações de artistas, o velho e ranzinza mestre está mais do que certo.

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